O filme Blade Runner 2049 estreia na próxima quinta-feira (5) e, como forma de nos prepararmos para a continuação deste verdadeiro clássico do cinema, decidimos assistir ao Blade Runner original, lançado em 1982. Nós assistimos a quatro versões do longa, a saber: Versão para o cinema norte-americano (82), Versão Internacional (82), Versão do Diretor (1992) e Versão Final (2007). Veja nos próximos parágrafos tudo o que você precisa saber para assistir à continuação de um dos grandes clássicos da ficção científica.
O enredo
Blade Runner – O Caçador de Andróides, como o filme foi chamado no Brasil, foi lançado em 1982 e teve direção de Ridley Scott que, à época, estava em seu auge. Anos antes havia dirigido outro clássico: Alien, o Oitavo Passageiro (Alien, 1979). O filme é baseado no livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (Do Androids Dream of Electric Sheep?), de Philip K. Dick, um renomado escritor de ficção científica. A trama se passa em Novembro de 2019 e é bem simples. A humanidade conseguiu um significativo avanço no desenvolvimento de androides que, no filme, são chamados de Replicantes. Eles são iguais aos humanos, inclusive com mais força e agilidade, porém, não possuem sentimentos. Eles são usados em trabalho escravo nas colônias extraterrestres. Porém, depois de alguns anos, os replicantes começam a desenvolver os mais diversos sentimentos e passam a questionar as coisas a seu redor. Para evitar que as coisas desandem, os replicantes são criados com um prazo de validade bem curto: 4 anos. Depois desse período, eles simplesmente morrem. No filme, 4 replicantes se rebelam e vão em busca de respostas, além de, é claro, tentarem aumentar o seu tempo de vida. No processo eles deixam uma trilha de sangue, assassinando várias pessoas. É aí que entra a figura do Blade Runner, um investigador que tem a missão de perseguir e matar os replicantes, que agora são ilegais na Terra. Interessante que eles não usam o termo “matar” e sim “aposentar”, o que denota ainda mais que os replicantes não passavam de simples ferramentas de trabalho. No longa, acompanhamos um Blade Runner aposentado, Rick Deckard, interpretado por Harrison Ford, que é chamado de volta para caçar e aposentar os 4 replicantes rebeldes qu estão na Terra em busca de respostas. Essa caçada resulta em um vislumbre cyberpunk de uma Los Angeles suja e pouco atraente, além de diversos questionamentos filosóficos sobre a natureza humana.
O visual
Blade Runner inaugurou no cinema um sub-gênero da ficção científica, o cyberpunk, que ao longo das décadas de 1980 e 90 foi largamente utilizado por Holywood. O cyberpunk se caracteriza por uma sociedade distópica onde a tecnologia é extremamente avançada mas a qualidade de vida segue o exato oposto. No filme de Ridley Scott vemos uma Los Angeles suja, escura, triste, solitária e mergulhada em uma eterna noite chuvosa. A tecnologia de ponta está presente: temos carros voadores, equipamentos com controles de voz e androides com aparência humana. Por favor, relevem a presença de monitores de tubos e a ausência de smartphones, o filme é do início da década de 80! As roupas dos personagens também causam estranheza. Embora se passe em 2019, as pessoas se vestem como se estivessem nos anos 40/50. Vemos sobretudos, ternos, gravatas borboletas e outros itens do vestuário formal do começo do século XX. Isso faz uma ligação direta com os filmes noir, que foram produzidos durante estas décadas. A estética de Blade Runner influenciou toda uma geração e foi utilizada em diversos outros filmes de sucesso, como O Exterminador do Futuro (The Terminator, 1984); Robocop – O Policial do Futuro (RoboCop, 1987); O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990); Akira (1998); Ghost in the Shell (1995) e Matrix (The Matrix, 1999). Só por isso já podemos perceber a importância que Blade Runner teve na indústria cinematográfica.
Sci-fi Cyberpunk Neo-Noir?
Muitos críticos classificam Blade Runner como um filme de ficção científica dentro de dois sub-gêneros: o cyberpunk e o neo-noir. O primeiro já explicamos acima, mas por que neo-noir? O motivo é que ele reúne diversas características dos filmes Noir. A primeira delas é uma visão de mundo bem pessimista, onde tudo e todos são cínicos e corruptíveis. E isso fica claro ao observarmos a ambientação do filme. Os protagonistas dos filmes desse gênero não são heróis unidimensionais. Eles são complexos e geralmente representados por uma figura de autoridade, como um policial ou um detetive particular. E em Blade Runner temos Deckard, que é um investigador bastante tridimensional, com inúmeras camadas em sua personalidade. Nas versões originais do longa há uma narração de Deckard em alguns momentos, que ajuda a reforçar ainda mais a sensação de se estar assistindo a um filme Noir. Blade Runner também conta com a figura de uma Femme Fatale, no caso, a replicante Rachel, que não só arrebata o coração de Deckard mas também se torna uma importante aliada. Além disso, o figurino dos personagens remete às décadas em que os filmes Noir foram feitos (1940/50). E a própria fotografia e iluminação bebem muito da fonte de tal gênero cinematográfico, fazendo um belo jogo de luz e sombras em diversos momentos.
A importância do olhar
Uma análise mais minuciosa e aprofundada do filme revela, porém, que seu ponto forte vai muito além da estética. Vemos que o olhar tem uma importância muito grande no enredo. Basta lembrar que um dos primeiros frames do filme é o super close de um olho observando as luzes da cidade, como se esta fosse uma galáxia distante. E os olhos permeiam toda a trama: os replicantes são identificados através dos olhos; os androides Roy e Leon visitam um fabricante de olhos em busca de informações; Roy Batty mata seu criador perfurando-lhe os globos oculares; o brilho alaranjado nos olhos dos replicantes e, claro, o redentor discurso de Roy Batty ao final do filme, onde ele diz: I’ve seen things you people wouldn’t believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die. Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer. Notaram a repetição do verbo ver e o poético uso da palavra “lágrima” na fala acima? De fato, quanto mais você assiste Blade Runner, mais nuances temáticas consegue observar.
Os vários pontos de vista
Embora o seu enredo principal seja simples e óbvio, Blade Runner traz diversos sub-textos complexos e que fazem o espectador pensar. Há uma forte discussão subjetiva sobre mortalidade; sobre a ética do Homem em agir como um Deus criando vidas e decidindo o que fazer com elas; sobre a natureza da humanidade e o que faz alguém ser um humano. Será que seres sintéticos mas que desenvolvem consciência não podem ser tratados como humanos? Vemos também Deckard e Rachel em busca de um novo propósito na vida ou simplesmente viverem um grande amor, uma paixão incontida. Do outro lado, o grupo dos 4 replicantes rebeldes, ao começarem a experimentar a efusão de sentimentos e sensações de uma mente consciente, buscarem desesperadamente respostas para a sua existência e, principalmente, um pouco mais de tempo neste mundo, um pouco mais de tempo para saborear todas estas sensações e experiências. No fundo, no fundo, todos estão buscando as mesmas coisas. É justamente essa pluralidade de temas que faz Blade Runner ser tão cultuado por cinéfilos em geral e gerar debates sem fim em rodas de amigos.
Metáforas religiosas
Não podíamos deixar de fora as claras metáforas religiosas presentes no filme. Tyrell, o dono da megacorporação responsável por fabricar os androides, tem o papel de Deus daquele mundo. Inteligente e inalcançável. Ele cria vidas (os Replicantes) e decide o destino delas, inclusive a data de morte. O verdadeiro Criador daqueles seres. Uma das replicantes, Zhora, possui o sobrenome bíblico: Salomé. Ela tem uma serpente como mascote, o animal que causou a perdição do homem no Jardim do Éden. E foi justamente a escama da serpente que levou Deckard ao seu encontro. Até mesmo as condições de sua morte são uma metáfora religiosa. Ela é baleada duas vezes nas costas, um tiro de cada lado, o que representa as feridas de asas arrancadas, como se um anjo houvesse caído do céu (as colônias alienígenas). Porém, a mais controversa metáfora religiosa é a do antagonista, Roy Batty. Em determinados momentos ele representa o próprio Diabo, como quando confronta o seu Criador em busca de respostas, em um claro exemplo de rebeldia. Já em outros, ele pode simbolizar Jesus Cristo, como quando enfia um prego na palma de sua mão, tentando evitar a contração involuntária da mesma. O objetivo do antagonista, que aqui não pode ser chamado de vilão, se compara a de um Messias: libertar o seu povo da escravidão (literal) e conseguir mais tempo de vida.
Seria Deckard um replicante?
E, como se não bastasse a pluralidade de temas e interpretações para a obra, Blade Runner ainda deixa algumas questões propositalmente soltas, o que só alimenta ainda mais o debate em torno da obra e a mantém viva na mente dos fãs. Seria Rick Deckard um replicante que não sabe de sua condição, assim como era a Rachel? Ao longo de seus 117 minutos, o filme dá algumas pistas que apontam para tal possibilidade. As “inexplicáveis” fotos antigas no piano de Deckard, por exemplo. Logo após ser explicado que as memórias dos replicantes são implantadas por meio de fotografias antigas, vemos que o nosso protagonista possui uma série delas em seu piano. E ele as olha com um semblante de tristeza, como se estivesse relembrando momentos passados. Além disso, quando indagado por Rachel se ele já passara pelo teste de detecção de replicantes, ele simplesmente fica calado. Mas a pista mais evidente é, sem dúvida, o origami de unicórnio deixado pelo policial Gaff no final do filme. Deckard havia tido um estranho sonho com um unicórnio no final do primeiro ato. Ele não comenta isso com ninguém. E, sem mais nem menos, Deckard encontra o unicórnio de origami feito por seu colega. Isso pode ser um indicativo de que Gaff sabe quais memórias e sonhos estão implantados na cabeça de Deckard. E o origami foi uma forma sutil de informar isso para ele. Ainda há outros detalhes que apontam para a possibilidade de Deckard ser um replicante, mas os mais significativos já foram mencionados.
Opinião pessoal
Não há dúvida da importância de Blade Runner para o cinema mundial e das suas inúmeras qualidades: roteiro, direção, fotografia, trilha sonora, atuações memoráveis, design de produção, etc. Porém, este não é um filme que agrada a todos. Blade Runner é um filme complicado de se assistir e que exige muito do espectador. Para pegar todos os questionamentos filosóficos e as metáforas ao longo da trama o espectador precisa assistir ao filme mais de uma vez, com paciência e atenção redobradas. Sempre procurar ter empatia com os personagens, o que nem sempre é fácil, já que o roteiro não os desenvolve tão profundamente. Por isso, nas exibições-testes, feitas meses antes do lançamento oficial, ele foi rechaçado pelo público, que achou a história muito confusa. Tanto que ele foi um fracasso de bilheteria. Já a crítica recebeu Blade Runner com hesitação, também por não compreender por completo o teor do filme. Apenas com o passar do tempo e com o lançamento de novas versões, foi que Blade Runner passou a ser melhor compreendido e, então, cultuado pelo público. E, hoje, ele tem esse status de filme cult. Porém, não se engane, Blade Runner é um filme bem difícil e que vai exigir muito mais do que apenas você sentado na cadeira. É preciso manter o cérebro bem ligado e ficar remoendo a trama, mesmo horas depois de ter visto o filme. E sim, mesmo que você não goste de Blade Runner, vale a pena passar por essa experiência.