Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City é a mais recente tentativa de reinserir o universo pós-apocalíptico mundialmente famoso nas telonas. A última representação live-action desse tipo foi com a saga protagonizada por Milla Jovovich, em 2016, que, por sinal, não possui uma boa reputação entre os fãs da saga. Outras animações, como No Escuro Absoluto, da Netflix, continuaram a surgir, mas ainda havia uma certa expectativa sobre esta nova produção. Existe uma série de fatores que tornam o lançamento da Sony Pictures difícil de compreender e defender. A seguir, detalhamos alguns destes pontos e como a estrutura de Welcome to Raccoon City, além das diversas referências ao jogo original, chega a um ponto em comum com as adaptações anteriores: lugar nenhum. Vale lembrar que, para adentrar em curiosidades e easter eggs, precisamos abordar algumas partes do filme. Então, a nossa crítica abaixo contém spoilers pontuais, tanto sobre a produção quanto os jogos. Recomendamos assistir ao filme antes de prosseguir, que se encontra em cartaz no cinema mais próximo de sua casa.
O amadorismo de Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City
Dirigido por Johannes Roberts, cineasta que se diz fã da série, o novo filme de Resident Evil soa como um sorteio de eventos e personagens para serem abordados em uma hora e meia de gravação. Imagine um cenário utópico em que toda a equipe de profissionais se reúne para discutir quais histórias abordar em um único filme — afinal, são oito títulos lançados nos videogames, além de DLCs e jogos paralelos. Com cada integrante elegendo um personagem, decide-se então que tudo entrará no corte final. Isto é Bem-Vindo a Raccoon City. Obviamente, isso não condiz com a realidade de criação de roteiro e filmagens de qualquer filme já produzido. Mas, devido ao amadorismo do filme, essa é a sensação que passa ao espectador. Um longa-metragem que deseja se sustentar apenas em fan service sem definir uma linha de raciocínio quanto à trama, ao desenvolvimento de personagens e à progressão da narrativa. Um ponto muito importante que deve ser reiterado aqui neste texto é: não há problema em adaptar uma obra e trazer novos elementos à sua história, desde haja espaço para que estes novos eventos façam sentido em conjunto. Como adaptação dos jogos originais, o filme é um desastre. Mas a intenção de Johannes era trazer um novo olhar cinematográfico para a trama de dois títulos específicos da franquia, então isso não seria um grande empecilho. Porém, o filme também não funciona sozinho e, nesse sentido, o resultado é bem triste.
‘Topa tudo’ em uma hora e trinta minutos
Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City foi divulgado como um filme que abordaria as histórias de Resident Evil 1 e 2, trazendo também seus respectivos personagens à tela. Então, como resultado, temos uma produção com Leon S. Kennedy, Jill Valentine, Chris Redfield e Claire Redfield em uma única linha temporal de acontecimentos. Como grande parcela dos interessados na franquia já conhece, o cenário do primeiro jogo é a Mansão Spencer, enquanto a cidade de Raccoon City — mais especificamente a icônica delegacia — é o principal local do segundo jogo. A estrutura do filme é baseada nos horários em que acontecem os eventos até marcar 6h da manhã, quando Raccoon City é completamente destruída pela Umbrella Comporation, a arqui-inimiga de toda a saga. Em toda a sua duração, o longa tenta apresentar os personagens, criar vínculos entre eles, levá-los aos dois cenários principais dos jogos, incluir alguns zumbis e criaturas icônicas e entregar ação mesclada com o terror. Ele não consegue. Um dos principais defeitos de Bem-Vindo a Raccoon City é a falta de espaço para aproveitar esses personagens, que são tão ricos, e desenvolvê-los de maneira adequada. Nenhum personagem tem chance de crescer nesse roteiro limitado e datado. Enquanto isso, a maior preocupação parece ser mostrar que o filme se passa no fim dos anos 90 e mostrar vários easter eggs dos jogos. Mas vale lembrar também que easter egg não faz um filme.
Um grupo apático de personagens
Em um só filme, são reunidas as figuras mais queridas pelo público fiel ao game. A primeira delas é Claire, interpretada por Kaya Scodelario, que em certos momentos toma o protagonismo para si. Visualmente, a atriz é a que mais se parece com a original, mas sua personalidade é diferente e, para completar, sua performance não é boa. A Claire de Bem-Vindo a Raccoon City é mais fria, impulsiva e “fora da lei” que é a já conhecida. Mas o maior problema da personagem é que Kaya não consegue entregar uma atuação completa. Claire soa apática, sem muitas emoções. Na verdade, apatia é uma característica de grande parte do elenco. Faltaram reações mais genuínas durante os acontecimentos do filme. Afinal, um apocalipse não é algo comum, certo? Leon, um grande protagonista, é completamente descaracterizado neste filme. A sensação é que o diretor levou a sério demais a descrição do personagem na história de Resident Evil 2, que dizia que os eventos do jogo se passavam no primeiro dia de trabalho do policial na delegacia de Raccoon City. O fato de ele ser novato não o torna automaticamente estúpido. O Leon de Avan Jogia foi para a direção da comédia. O personagem se torna o alívio cômico do grupo e é feito de chacota diversas vezes por seus companheiros. Além das piadas não serem engraçadas, o desempenho do ator também não é bom. Entretanto, assim como Kaya, que é uma boa atriz, muito disso se dá por conta da direção e do roteiro precário. Inclusive, Avan Jogia vem recebendo muitos ataques de fãs após o lançamento do filme. O próprio ator até limpou sua conta no Instagram, o que é lamentável. Existe uma linha tênue entre o trabalho de um ator e as ordens da produção por trás das câmeras. É essencial entender que, especialmente neste caso, a culpa dos personagens rasos não é inteira do elenco. Chris (Robbie Amell), irmão de Claire, é tão desinteressante no filme quanto seus companheiros da polícia. Em vários momentos, o personagem toma atitudes bem questionáveis e ele mesmo não possui o mínimo de carisma. Para uma figura tão amável na franquia original, vê-lo nesse cenário degradável é decepcionante. Por fim, Jill (Hannah John-Kamen) parece ser a única que demonstra alguma personalidade, embora apareça bem menos que o restante. Em compensação, seu arco é desinteressante e não gera nenhum tipo de comoção até o encerramento do filme. É apenas mais uma personagem no novo filme de Resident Evil. Esses são apenas recortes do núcleo principal de personagens, mas os coadjuvantes também ajudam a entregar uma performance do mesmo nível: medíocre. Desde Albert Wesker (Tom Hopper) até a pequena Sherry Birkin (Holly de Barros), as figuras parecem ser tão deslocadas no filme que não há motivos para torcer nem contra, nem a favor deles. É uma experiência sem emoção. Talvez a única exceção seja a caracterização de Lisa Trevor (Marina Mazepa), que está legal. Mas também, mais uma vez, seu arco não faz sentido dentro do filme.
Efeitos visuais de centavos
Se o roteiro e os personagens não entregam um bom entretenimento, pelo menos a parte técnica é coesa com o resto: é igualmente ruim, especialmente os efeitos visuais. A maquiagem em zumbis e na Lisa Trevor são mais certeiras do que os próprios monstros. O CGI dá uma aparência de embaçado e não muito bem polido, o que é questionável ao pensar que uma empresa de grande escala está por trás da produção deste filme. É tão distinguível a falta de qualidade técnica que é possível contar quantas vezes uma criatura específica aparece. Além de alguns mortos-vivos, existe um cachorro infectado, dois corvos, um licker — o monstro com audição apurada — e as duas evoluções do antagonista William Birkin (Neal McDonough). Não houve espaço (e aparentemente tempo) para aprimorar essas tecnologias para as telonas. Outro problema com a produção é a locação dos cenários. A Raccoon City deste filme aparenta ser um bairro vazio de tão perto que são suas construções entre si. Até mesmo a Mansão, que está afastada na parte florestal, mas não tão distante para uma rápida viagem. São muitos erros de continuidade e até de lógica neste longa. Para completar, algumas filmagens são mal gravadas e a iluminação é ruim em alguns momentos.
Os principais easter eggs de Resident Evil no novo filme
Como foi dito anteriormente, houve uma necessidade absurda durante o filme de apontar a todo momento uma referência de Resident Evil. E embora não ajudem a limpar o amargor causado pelo filme, alguns easter eggs encontrados ainda foram interessantes. O primeiro deles é logo no início do filme, quando vemos o icônico caminheiro percorrendo a estrada até Raccoon City. Assim como nos jogos, ele está com um belo hambúrguer em mãos. Um detalhe bacana de ser inserido no filme. A única diferença dessa cena nos dois formatos é que Claire acompanha o motorista na versão de Johannes. Outro momento escrito pros fãs foi no diálogo de Wesker e Jill na lanchonete. Em determinado momento, Jill ganha uma aposta em cima do policial, rouba seu lanche e diz que agora é um “sanduíche da Jill“. Essa fala se refere a uma cena do primeiro jogo de Resident Evil, quando Barry, personagem que não existe nesse novo filme, salva Jill de uma armadilha e dispara: “Você quase virou um sanduíche de Jill“. Quando Claire permanece na casa de Chris logo após seu irmão deixar o local, ela percebe que os vizinhos estão querendo dizer algo a ela. Acontece que eles estavam se transformando em zumbis por conta do vírus mortal. Uma dessas figuras bate na janela da casa e escreve com seu sangue “Itchy. Tasty“. Essas palavras são encontradas em um dos arquivos da campanha de Resident Evil 1, que são folheados por Jill e descrevem o relato da lenta transformação de um personagem. Mais dois easter eggs estão na delegacia de Raccoon City. Um é a clássica decoração de boas-vindas a Leon, já que era seu primeiro dia de trabalho. No filme, isso foi colocado na parede. A outra é durante uma conversa da equipe da S.T.A.R.S. em que Jill faz um questionamento: “Qual é a pior maneira de morrer: ser engolido por uma cobra gigante ou devorado por um tubarão branco?“. Essas são literalmente as duas formas possíveis que Richard Aiken (vivido por Chad Rook no filme) pode morrer em Resident Evil 1. Infelizmente, isso não foi reproduzido nessa versão inédita. Na Mansão Spencer, dois easter eggs se destacam. O primeiro é o que apareceu já no trailer de divulgação, na cena em que um zumbi específico virou seu rosto para a equipe. O segundo fan service é relacionado a um puzzle específico também no primeiro jogo da saga, o quebra-cabeças do piano. No game original, vários enigmas desse precisam ser resolvidos pelo jogador, então é legal que este, em especial, tenha sido lembrado na adaptação. Inclusive, quem resolve o puzzle no filme é Wesker, que está com um aparelho eletrônico em mãos que emula um mapa muito parecido com o mapa do primeiro jogo. Lembra das chaves da delegacia que tinham cores e naipes diferentes? Durante o filme, em um momento bem curto, Claire usa uma delas para destravar uma passagem secreta no orfanato. Além disso, enquanto vasculha arquivos da Umbrella Corporation, a personagem assiste a um vídeo que mostra os gêmeos Alexia e Alfred Ashford, que aparece no jogo Resident Evil — CODE: Veronica X. A cena do game é quase idêntica a do filme. Encerrando o nosso bloco, vamos para os eventos finais do longa-metragem. Quando Sherry acorda de um pesadelo e descreve que viu uma criatura verde com garras, muito provavelmente ela se referiu ao Hunter, um dos inimigos do primeiro Resident Evil. O cientista William Birkin aparece em certo momento do filme vestindo uma camiseta com os dizeres “Tall Oaks“. Coincidentemente, esse é o nome da cidade onde acontece o prólogo de Resident Evil 6. Já a cena pós-créditos de Bem-Vindo a Raccoon City dá duas referências aos fãs: a aparição de Ada Wong (Lily Gao), outra figura importante dos jogos, e os óculos pretos de Wesker, que fazem parte de sua identidade visual como um dos vilões mais conhecidos da franquia. Esses foram apenas alguns de várias outras referências e curiosidades que o filme dá de presente para os fãs de Resident Evil. Por outro lado, mesmo que vê-los em tela seja bacana, os diversos pontos negativos da produção acabam se sobressaindo.
Valeu a pena produzir Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City?
Não. O filme padece não só como adaptação dos jogos originais, como também não se sustenta como uma produção solo. O excesso de personagens prejudicou o andamento do filme e, no fim das contas, nenhum deles conseguiu ser bem desenvolvidos. As atuações não transparecem as emoções dos personagens, a parte técnica deixa a desejar e o resultado é um emaranhado de frases feitas e referências dispostas como uma produção amadora. O filme poderia ser muito mais interessante e proveitoso se houvesse uma seleção mais clara de ideias que fizessem sentido nesse contexto, mesmo que modificasse elementos da história original. Além disso, o longa não está performando bem nem com a crítica especializada. No Rotten Tomatoes, a produção conseguiu apenas 29% de aprovação contra 66% do público geral. Como uma obra criada do zero e baseada em universo tão rico e cheio de nuances como o de Resident Evil, esse novo filme é um ótimo exemplo de estudo e de análise do que não fazer com uma franquia em uma adaptação para os cinemas.
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