Apesar disto, um olhar atento ao psicanalista revela uma das figuras públicas mais controversas da história: alguém tão bom em se vender que conseguiu convencer diversos acadêmicos ao redor do mundo a aceitar resultados de estudos que foram feitos sem nenhum rigor científico — e, mesmo assim, definiu as bases do que viria a se tornar a ciência da psicologia.
Psicologia x Psicanálise
Apesar de no imaginário popular Freud ser considerado como o “pai da psicologia”, é necessário deixar claro que o título correto é “pai da psicanálise”, e que uma coisa é bem diferente da outra — e, se você tentar insistir que “dá na mesma” para qualquer estudante ou profissional de psicologia, prepare-se para uma longa discussão. Ainda que o senso comum não consiga diferenciar ambos, é necessário deixar claro que a psicologia — a ciência que hoje é estudada nas faculdades e que forma os profissionais conhecidos como psicólogos — é bem diferente da psicanálise, o método de tratamento criado por Freud. E a grande diferença pode ser simplificada exatamente nas palavras usadas por este texto para se referir a elas: “ciência” e “método”. Por ser uma ciência, a psicologia exige que qualquer um de seus estudos siga à risca o método científico. Isso quer dizer que a psicologia não trabalha com suposições, mas com teses que precisam ser comprovadas através de evidências empíricas verificáveis, obtidas por observações sistemáticas e controladas, e que qualquer outra pessoa que efetue o mesmo experimento utilizando a mesma metodologia venha a obter os mesmos resultados. Enquanto isto, por ser um método não-científico, a psicanálise não exige esse rigor — e esta é a principal crítica que há tempos se faz a Freud, que criava suas teses e, muitas vezes, nem as testava, ou então mascarava os resultados dos experimentos para que corroborassem com aquilo que havia sido previamente determinado pelo médico. Essa diferença também pode ser vista nas exigências de cada profissão: para ser uma psicólogo, o profissional precisa ter um diploma válido de uma faculdade ou universidade que oferece o curso de psicologia. E, enquanto o papel de psicanalista exige também que essa pessoa complete um curso de psicanálise, este curso não possui valor universitário, sendo equivalente a cursos de capacitação pessoal/profissional, como os de informática ou de inglês. Assim, a dicotomia entre o papel do psicólogo e do psicanalista equivale à existente entre o fisioteraupa e o quiroprata: enquanto para o entendimento geral ambos são profissionais que podem te ajudar a tratar um problema específico (como, por exemplo, uma dor nas costas), a diferenças na formação de ambos faz com que eles sejam considerados profissionais de níveis hierárquicos diferentes. Ao mesmo tempo, isto não quer dizer que a psicanálise não é efetiva: apesar de haver um número muito menor de psicanalistas do que de psicólogos, há diversos relatos de pessoas que conseguiram recuperar a saúde mental usando seus métodos. Por isso, mesmo que estejamos de acordo que a psicanálise não é uma ciência, não é exatamente correto dizer que ela é uma fraude. Mas, por conta da falta de um rigor científico neste método, muitas vezes é impossível separar o que são resultados positivos gerados pelo tratamento do que é efeito placebo.
Freud = fraude?
Falar sobre Freud à luz do último século de descobertas no ramo da psicologia é algo extremamente complicado. Isto porque não é algo simples dizer se o pai da psicanálise estava errado ou certo, já que muitas vezes a resposta para isso é “as duas coisas”. Claro, os estudos de Freud não podem ser considerados como ciência porque ele nunca seguiu critérios científicos. E, além de tudo, quando vistos sob a ótica do que sabemos hoje, muitos deles parecem absurdos — como, por exemplo, o fato de ele atribuir a culpa de diversos transtornos femininos a uma inveja que as mulheres sentiam dos homens por elas não possuírem um pênis. Ao mesmo tempo, não é como se todo o método criado por Freud fosse uma enganação: não só o psicanalista realmente ajudou muita gente a superar alguns transtornos relacionados a traumas psicológicos em sua época, como foi o sucesso de seu método que ajudou as pessoas a começarem a aceitar que problemas psicológicos são tão reais quanto os físicos, e permitiu que a área da psicologia surgisse como uma ciência séria para o estudo desses traumas. Uma analogia interessante é considerar que os estudos de Freud consistem de uma “proto-ciência”, pois não seguem nenhum dos métodos científicos em suas análises do psicológico, mas foi importante para o surgimento de uma ciência que passaria a fazer essa análise. Assim, o método criado por Freud seria análogo a algo como a alquimia: um tipo de estudo que não possui nenhum rigor científico, mas que foi importante para que, a partir dele, uma ciência real (no caso da alquimia, o estudo da química) pudesse se desenvolver. Isto acontece porque, apesar de Freud estar errado em muitas de suas teorias e análises, o pensamento (ou a intuição) que originou esses erros estava muitas vezes correto, e muitos conceitos considerados como lugar comum da psicologia hoje foram imaginados e trazidos a público pelo psicanalista austríaco.
Freud e a mente humana
Uma das teorias mais famosas de Freud sobre a mente humana é a de que ela é dividida entre ID, Ego e Superego, e que seria a disputa entre essas “divisões” da mente humana o responsável por todas as nossas ações. Assim como todas as teorias de Freud, essa não possuía nenhum critério científico envolvido. O psicanalista basicamente decidiu que era isso o que acontecia, passou a utilizar isso em seus tratamento e conseguiu convencer a todos de que era verdade, mesmo sem apresentar qualquer estudo sério (ou seja, que seguisse a metodologia científica). Mas ainda que, hoje, a ideia dessa divisão ter sido derrubada e nenhum dos estudos científicos feitos posteriormente à Freud ter confirmado a existência dela, o raciocínio por trás desta definição totalmente equivocada do psicanalista estava correto. Isto porque toda a ideia da divisão da mente entre ID, Ego e Superego é baseada em uma concepção de que nós não temos tanto controle de nossos pensamentos quanto pensamos. Na época que Freud surgiu com suas teorias, o consenso geral era de que o pensamento racional era o único existente na mente humana, e que por isso cada indivíduo teria total controle sobre tudo o que acontece em seus pensamentos. Claro, não foi Freud que descobriu a existência do inconsciente — isso pode ser atribuído ao psiquiatra francês Pierre Janet e ao neurologista Jean Martin Charcot — mas, ao levar esse conceito a outro nível e passar a aplicá-lo em seus tratamentos, pedindo que os pacientes contassem a ele como se sentiam em relação até mesmo a experiências que poderiam parecer irrelevantes, Freud mostrou que os homens não são criaturas tão racionais quanto achávamos ser, e que muitas vezes tomamos mais decisões baseadas naquilo que sentimos do que baseados na lógica — um conceito que já foi provado por psicólogos e que até hoje é uma das bases de muitos tratamentos psicológicos. Assim, ainda que hoje já saibamos que a mente não funciona exatamente da forma como Freud a dividiu, ele estava correto na suposição de que existia um nível inconsciente da mente humana que não é exatamente acessível ou controlado pelo indivíduo, mas que possui bastante influência em todas as decisões que este indivíduo irá tomar ao longo da vida.
Freud e o cérebro humano
Claro, a ideia da divisão da mente em ID, Ego e Superego também possuía um segundo conceito por trás dela: a de que o cérebro não era algo único, mas a soma de diversas partes que trabalhava em conjunto. Freud foi um dos primeiros a acreditar que o cérebro podia ser compartimentalizado e dividido em pedaços individuais, cada qual com a sua função. Logicamente, a divisão criada por Freud era muito equivocada, mas a ideia em si estava correta, e estudos neurológicos efetuados décadas depois, e que se utilizaram de tecnologias que ainda não existiam na época do psicanalista (como as máquinas de ressonância magnética por imagem, que foram surgir apenas na década de 1970, mais de 30 anos após a morte do austríaco), comprovaram que o cérebro humano é mesmo constituído de diferentes partes, cada qual responsável por uma função específica. Outra parte do trabalho de Freud que é levada a sério ainda hoje são suas teorias dele para o funcionamento da memória humana — e, assim como em todos os outros pontos onde o psicanalista ainda deve ser levado a sério, isso deve ser feito apenas em partes, e não com todo o trabalho. Um exemplo disso é como o ele tratava a ideia de memórias reprimidas, alegando que a mente das pessoas poderiam “forçá-las” a se esquecer de eventos traumáticos que estão afetando seu psicológico no presente, e que a terapia da psicanálise poderia ser usada para ajudá-los a relembrar esses eventos e, assim, indicar para essas pessoas um caminho para que possam superar esses traumas do passado. O problema dessa história é que estudos posteriores a Freud indicam exatamente o contrário daquilo que ele acreditava: eventos traumáticos não são “esquecidos” pela mente, mas lembrados de forma vívida por aqueles que o viveram. Outro ponto interessante também é a descoberta de que a mente humana pode “forjar” memórias, fazendo com que indivíduos se lembrem vividamente de situações pelas quais nunca passaram. Assim, uma terapia voltada para fazê-los lembrar de uma memória reprimida, se não for bem aplicada, pode fazer com que o paciente “invente” uma lembrança de trauma, o que pode causar ainda mais problemas para o psicológico dele. Mas, ainda que Freud não estivesse completamente certo em como o cérebro funciona (principalmente no que diz respeito a repressão de momentos traumáticos) a ideia de que uma pessoa pode reprimir as próprias memórias é real, mas costuma acontecer mais em memórias cotidianas do que em eventos realmente traumáticos. Hoje nós sabemos que nossas memórias são seletivas e estão sendo constantemente reescritas cada vez que são retomadas, porque a lembrança de um evento está intrinsecamente ligada aos sentimentos que uma pessoa tem sobre aquele evento em si. Por isso que eventos que geram sentimentos fortes (como traumas ou ocasiões de extrema alegria) são mais difíceis de serem esquecidos pelo cérebro. Além disso, todo o trabalho de Freud sobre mecanismos de defesa ainda é extremamente relevante hoje em dia, e mesmo na psicologia é difícil encontrar alguém que não concorde que todas as pessoas aplicam regularmente diversos processos subconscientes/inconscientes que modificam a forma como ela reage perante o mundo e a seus próprios problemas.
Freud e a Sexualidade
Não há dúvidas que as principais teorias de Freud giravam em torno da sexualidade, e muitas das ideias com as quais fazemos relação direta com o psicanalista são referentes a ela. Exemplos claros disso são a história do Complexo de Édipo e a fixação que Freud possuía por símbolos fálicos — e que o levou a proferir a famosa frase “às vezes um charuto é apenas um charuto”. E, como poderia ser esperado, por ser esta a área em que Freud mais se dedicou, também é onde ele mais errou — algumas vezes de forma tão grosseira que sua teorias sobre sexualidade podem ser consideradas tão absurdas quanto defender que a Terra é plana em pleno 2020. Um desses casos é como Freud acreditava que o corpo feminino funcionava. Na época do psicanalista, todas os diferentes transtornos mentais que hoje conhecemos como sintomas de depressão ou de ansiedade eram catalogados como “histeria”, palavra derivada do grego “hystéra”, que quer dizer “útero”. A própria palavra já revelava o sexismo presente neste diagnóstico, já que esses problemas não eram vistos como algo psicológico, mas como um problema no útero — e, por isso, uma doença que seria exclusiva das mulheres. E, se a identificação desses problemas já é altamente controversa, o diagnóstico deles consegue ser ainda pior. Freud atribui uma grande parte desses traumas a algo que ele chama de “inveja do pênis”, um ressentimento que a mulher desenvolveria durante sua maturação sexual e que, por isso, teria um superego subdesenvolvido — o que, para Freud, tornava as mulheres como moralmente inferiores aos homens. Uma concepção tão errada quanto é visto também na explicação do psicanalista sobre o prazer feminino, defendendo que a vagina é o centro sexual da mulher madura (ou seja, que já tem relações sexuais com um parceiro do sexo masculino) e que, caso não conseguisse chegar ao orgasmo através da penetração de seu parceiro, ela deveria procurar ajuda médica por ser “frígida”, uma concepção completamente equivocada de Freud. De acordo com o que Betty Friedan publicou no livro A Mística Feminina, a visão de Freud sobre a mulher não estava dissociada de sua época, e o psicanalista as enxergava como incapazes, inferiores e infantilizadas. E, mesmo que seus estudos partissem de uma vontade real de ajudar as mulheres a atingir a satisfação sexual, em nenhum momento ele conseguia imaginá-las como pessoas com desejos e necessidades iguais às dos homens. Assim, aquilo que Freud considerava como “tratamento” nada mais era do que uma espécie de “lavagem cerebral” para que as mulheres abandonassem seus desejos “neuróticos” de serem vistas como iguais e ajudá-las a se afirmarem como “naturalmente inferiores” aos homens. Mas, mesmo que muitas das teorias sobre sexualidade de Freud sejam absurdas aos olhos do conhecimento atual, outras ideias ainda tem validade nos seus princípios. Um dos maiores exemplos é o que talvez seja a teoria mais famosa do psicanalista: o Complexo de Édipo. Mesmo que estudos científicos ainda não conseguiram encontrar nenhuma prova de que, durante seu desenvolvimento sexual, meninos tenham uma inveja natural do pai por este ter relações sexuais com suas mães, a ideia por trás desta teoria — a de que a família possui muita influência no desenvolvimento psicológico da criança — é uma verdade aceita hoje até mesmo por psicólogos que não seguem a linha freudiana de terapia. Algo parecido pode ser dito da visão de Freud sobre a homossexualidade. Ainda que a explicação dele para pessoas se interessarem sexualmente por outras do mesmo gênero — sua teoria é de que o desenvolvimento sexual de todas as pessoas passam por quatro fases (oral, anal, fálica e genital) e que a homossexualidade surgiria de um distúrbio durante a fase anal — ser hoje claramente absurda, o austríaco era, incrivelmente, bastante progressista nesta questão para sua época. Essa visão progressista sobre a homossexualidade pode ser encontrada em uma carta escrita por Freud, respondendo às dúvidas de uma mãe dos Estados Unidos sobre como deveria tratar a condição de homossexual do filho. Na carta Freud afirma que ela não deve ter vergonha da homossexualidade do filho, pois esta não é nenhum vício, degradação ou doença, que diversos indivíduos de extrema importância histórica também foram homossexuais (ele cita Platão, Michelangelo e Leonardo da Vinci como exemplos) e que é uma grande injustiça, além de cruel, perseguir os homossexuais por conta de suas escolhas sobre com quem desejam se relacionar sexualmente.
Freud no século XXI
Falar de Freud em pleno século XXI é algo bastante complicado — principalmente porque, apesar de estar errado em tantas coisas, poucos foram tão importantes para o desenvolvimento intelectual ocidental no século XX quanto o austríaco. Isto porque o legado de Freud transcende a ciência que ele ajudou a criar, e se permeou de forma direta em nossa sociedade. Desde termos derivados diretamente de suas teorias (como “símbolos fálicos” e “mecanismos de defesa”) quanto à normalização de ideias desenvolvidas pelo psicanalista (como a interpretação de sonhos), é possível encontrar a influência de Freud em praticamente todos os momentos de nossa vida — um feito e tanto para alguém que, hoje, sabemos que em muitos momentos estava mais errado do que correto. Para John Kihlstrom, psicólogo e crítico de Freud, o psicanalista austríaco teve uma influência maior na cultura do século XX do que Einstein, Hitler, Lenin, Roosevelt, Kennedy, Picasso e até mesmo os Beatles. Essa influência é confirmada também pelo famoso crítico literário Harold Bloom, que inclui Freud em sua lista dos autores mais importantes de toda a história da literatura ocidental — sendo o austríaco o único cuja principal ocupação não era a de filósofo, historiador, poeta, romancista, dramaturgo ou qualquer outra ligada às letras. E uma leve revisada do material dele deixa claro porque o psicanalista exerceu tanto influência em nossa sociedade, pois apenas os homens mais raros podem estar tão errados, tendo praticamente todas suas teorias desmentidas pela ciência, e mesmo assim serem considerados como um importante pioneiro na própria ciência que os desmentiu. O legado de Freud é algo difícil de ter sua real importância medida, mas ele certamente é mais importante do que o próprio psicanalista imaginou quando ajudou a introduzir no mundo a noção de que os traumas da mente deveriam ser tratados com a mesma seriedade do que os traumas físicos. Fonte: ATI, Gizmodo, Huffpost, Big Think, New Yorker, LiveScience, New York Magazine, Sage Journals