Mesmo que Kojima tivesse decretado o fim da franquia em “Metal Gear Solid V: The Phantom Pain”, os fãs nem tiveram tempo para chorar as mágoas. No mesmo ano, praticamente junto com o anúncio de sua saída, Kojima revelou uma parceria com a Sony e que seu novo título (Death Stranding) seria lançado com exclusividade no console PlayStation 4. A parceria com Reedus e del Toro também foi aproveitada e agora, cinco anos depois, podemos conferir o resultado.

Uma campanha

de marketing confusa e genial

Quem está aguardando o lançamento de Death Stranding desde seu anúncio, sabe que não foi nada fácil entender o que se passava na cabeça de Kojima. Isso porque, em 2016, quando o primeiro trailer foi liberado na E3, não mostrava nada que fizesse sentido. No vídeo com pouco mais de três minutos, o personagem de Norman Reedus – até então sem nome revelado – acorda em uma praia repleta de animais encalhados ao lado de um bebê. A criança desaparece do colo de Norman, enquanto ele encara a imensidão do mar e o título do game é revelado. Os fãs ficaram empolgados e, ao mesmo tempo, muito confusos. Entender do que se tratava o game era uma tarefa difícil, poucos conseguiram acertar as teorias. Mesmo com o passar dos anos, a situação só piorava. Quanto mais era mostrado, menos as pessoas entendiam o conceito do game. O que muitos não devem ter percebido é que: essa era exatamente a intenção. Após passar por toda a experiência de Death Stranding, posso afirmar que essa foi uma das decisões mais sábias do estúdio. O próprio jogo em si estimula o jogador a buscar respostas sobre o que aconteceu com a humanidade. O que achamos de toda essa história revelada no ritmo de um conta-gotas você confere no review a seguir. Aviso: esse review não contém spoilers da história, tudo o que for citado é apenas sobre o que foi revelado nos trailers até agora

Um mundo devastado

e a humanidade dividida

Misteriosas explosões devastaram o planeta deixando a humanidade à beira do colapso. Os sobreviventes se refugiaram em cidades fortificadas e abrigos com pouco contato com o mundo exterior. Apenas os transportadores encaram a missão de levar suprimentos entre os locais seguros. Isso se deve ao fato da divisão entre o mundo dos mortos e dos vivos ser basicamente inexistente. Com o passar do tempo, foi descoberto que as explosões ocorreram por causa do contato dos humanos com Beached Things (entidades encalhadas, em tradução livre), seres do além que vagam por todo o território sem conseguir voltar para o mundo dos mortos. As EPs (sigla em português) são compostas por antimatéria, elementos químicos com cargas elétricas opostas à matéria dos seres vivos, quando há contato entre ambos o resultado pode ser uma explosão devastadora chamada de obliteração. Esse evento ficou conhecido como Death Stranding (paralisação da morte, em tradução livre), criando outros fenômenos paranormais. Um desses fenômenos foi o surgimento de pessoas com alta sensibilidade paranormal, chamados de DOOMS. Dependendo do nível dessa habilidade, o indivíduo consegue ver as EPs, senti-las e em alguns casos controla-las. É nesse cenário caótico que conhecemos o protagonista Sam “Porter” Bridges (Norman Reedus). Sam é um entregador que sofre de afefobia, que é o medo de ser tocado. Ele é recrutado pela empresa Bridges, criada por Bridget (Lindsay Wagner) – última presidente dos Estados Unidos – que tem a missão de reconectar a América. Bridget e sua filha Amelie (interpretada pela mesma atriz) construíram a Rede Quiral, um sistema capaz de transmitir grandes quantidades de dados em segundos, e precisam conectar todas as grandes cidades, de costa a costa, para trocar informações valiosas e manter a humanidade unida. O problema é que Amelie foi sequestrada após três anos de expedição, e cabe a Sam utilizar seus DOOMS para completar essa difícil tarefa. É possível reparar que todo o enredo principal fala sobre conexões e a necessidade das pessoas de se ligarem umas as outras. Esse é o cerne de Death Stranding, que utiliza diversas metáforas para reforçar essa importância. Um exemplo claro disso está logo na tela inicial do jogo em que aparece o texto do dramaturgo japonês Kobo Abe chamado “Rope” (cordão), no qual o autor fala sobre as primeiras criações da humanidade: uma vara e uma corda. A vara é utilizada para afastar, enquanto a corda é usada para unir. Utilizando essa metáfora, Kojima desenvolveu uma trama que usa de diversos conceitos para fazer essa referência. A própria Rede Quiral, o cordão umbilical dos bebês e a afefobia do protagonista são alguns exemplos que o produtor utiliza no game. Mesmo com uma história complexa, o fato do game estar 100% em português do Brasil ajuda muito na compreensão da trama. A dublagem brasileira é de alta qualidade, com vozes conhecidas dos filmes e séries. O próprio Norman, por exemplo, é dublado pelo ator Silvio Giraldi, o mesmo que dá voz ao personagem de Reedus em The Walking Dead.

Jogabilidade

simples e intuitiva

Para realizar a missão, o jogador deve levar suprimentos a todas as filiais da Bridges e conquistar a confiança de outros sobreviventes. Dessa forma, eles aceitarão fazer parte da rede para expandi-la por todo o território. Porém, se engana quem acha que todos aceitarão logo de cara. Muitos personagens são desconfiados e não acreditam nos ideais da Bridges, forçando o jogador a realizar missões extras para gerar confiança. O personagem terá que entregar materiais de todos os tipos, de comida até itens pessoais, sendo que cada item possui um peso diferenciado. Essa característica influência a mecânica do jogo, já que Sam tem um limite de peso que pode carregar. Nessa parte a física do game é realmente impressionante, já que um movimento brusco ou uma queda pode fazer com que a carga caia e seja danificada. Cabe ao jogador saber distribuir e administrar quanto peso carrega. No início temos ferramentas básicas para locomoção nas regiões montanhosas do game. O arsenal inclui cordas para decidas íngremes, escada para atravessar rios profundos e o CQP – uma impressora portátil capaz de criar dispositivos úteis como caixas postais, pontes e torres de vigilância. O tipo de terreno também influencia a movimentação do Sam, como um terreno molhado que aumentam as chances do personagem escorregar. A organização do peso é feita automaticamente apertando o botão triângulo no menu, o que facilita muito a vida do jogador. Esse não é o único detalhe que foi introduzido em Death Stranding, uma série de fatores podem influenciar a jogatina e dificultar a vida dos entregadores. Um deles é a Timefall (chuva temporal, em português), que acelera o ciclo de vida de qualquer ser vivo ou objeto, ou seja, tudo no game se deteriora e fica inutilizável rapidamente. Quando eu digo tudo, é tudo mesmo! As embalagens da carga, a própria carga, suas botas, equipamento e qualquer dispositivo que foi deixado para trás. Nada é permanente, o que me estimulou a ficar atento a todo momento durante minha jornada. É notável o capricho da Kojima Productions em fazer uma tarefa aparentemente “simples” tornar-se algo realmente desafiador. Parece complexo se atentar a tudo, mas o próprio game auxilia de forma competente cada uma dessas ações. Uma sessão de dicas fica à disposição do jogador no menu principal caso esqueça algo, além de lembretes constantes dos próprios personagens secundários.

Sistema de

combate

Não são apenas os mortos que trarão dor de cabeça ao jogador. Existem também os inimigos vivos, chamados de MULAS, que são antigos entregadores que enlouqueceram e ficaram viciados em roubar cargas. Ao entrar na área monitorada por eles, um radar é acionado atraindo os MULAS para sua posição. Cabe ao jogador decidir se corre ou enfrenta a ameaça. Nos momentos em que fiquei encurralado, o jeito foi sair na mão com os inimigos. É importante lembrar que não é aconselhável mata-los, já que eles podem se tornar EPs e dificultar ainda mais o gameplay. Ao golpear os inimigos eles derrubam cargas próprias, com as quais Sam pode usa-las como armas para nocauteá-los rapidamente. Novas opções de armas, letais e não letais, ficarão disponíveis conforme avançamos no gameplay, facilitando os confrontos. Podemos também usar uma corda para derruba-los de maneira furtiva, caso estejam em grande quantidade. No caso das EPs, as armas merecem uma atenção redobrada do jogador. Isso porque elas utilizam fluídos de Sam que incluem fezes, urina, água do banho e o sangue. Todos os materiais podem ser coletados no banheiro do quarto privado. Essa reação ocorre devido aos DOOMS que Sam possui e pelo fato dele ser um repatriado, ou seja, se o personagem morrer, sua alma consegue retornar ao corpo por conta própria. As habilidades especiais de Sam só permitem que ele sinta a presença das EPs. Para poder enxerga-las, é necessário carregar um bebê, que é chamado literalmente de BB (sigla para Bebê Bridges) em um recipiente que simula um útero. Ao se conectarem, ambos trocam lembranças e emoções, fazendo com que o protagonista sinta os medos e anseios da criança.

Evolução constante

Um mal que acaba ocorrendo com quase todos os jogos de mundo aberto é a repetição. E a equipe de Kojima fez um grande esforço para que isso não ocorra de forma tão brusca, inserindo um sistema de evolução constante. Basicamente, o jogador está a todo momento conquistando algo para melhorar seu desempenho e velocidade nas entregas. Seja por uma bota especial, escada melhorada ou veículos especiais. Outra característica inserida foram complementos na história. Ao realizar as entregas os NPC’s revelam mais sobre aquele universo e como têm sobrevivido ao Death Stranding. Nem toda a informação é realmente relevante, mas serve para enriquecer o universo e manter a motivação do jogador. Ao concluir as missões subimos de nível como entregador, além de ganhar habilidades como mais equilíbrio, estamina e velocidade. A ideia é que, com mais experiência, as entregas se tornem mais fáceis. Na realidade, os equipamentos melhorados que ganhamos dos NPC’s fazem a maior parte dessa vantagem, o que não altera o fato de ser mais um conteúdo de incentivo ao jogador.

Universo

construído em coletivo

Como o cerne de Death Stranding são as conexões, Kojima inseriu um sistema de interações com outros jogadores que me fez refletir sobre a empatia como um todo. No game é possível encontrar cargas perdidas de outros jogadores online e você pode pega-las para completar as missões ganhando pontos de elo com outros jogadores. Além disso, é possível usar pontes e equipamentos construídos por outros players que já passaram por aquele trecho. Caixas postais são encontradas por todo o game, no qual podemos repassar cargas que não conseguimos carregar. Caso tenha muitos itens e queira doa-los, é só o colocar em um armário compartilhado. Acreditem, vocês em algum momento irão agradecer por alguém ter deixado um item essencial nessas caixas. Em diversos momentos me vi construindo coisas pensando em como isso facilitaria a vida de quem passaria por ali. Só por esse pensamento ter surgido em mim, Kojima concluiu seu objetivo. Fazendo uma comunidade que recebe inúmeras críticas por sua toxidade ajudar pessoas que nunca tiveram contato. Isso só comprova a genialidade de um produtor que ama o que faz, criando conceitos que se entrelaçam com a história e o gameplay. A mesma prática pode ser aplicada no dia a dia, como uma doação de alimentos para pessoas carentes. Mesmo que muitos jogadores tenham construções no game, isso não quer dizer que não há esforço individual também. Death Stranding não funciona como um MMO, no qual todos estão ao mesmo tempo usufruindo daquele universo. O próprio servidor seleciona uma certa quantidade de coisas que podemos usar e o resto cabe ao jogador terminar. Vale lembrar que nada no jogo é permanente, a chuva temporal irá deteriorar tudo com o passar do tempo.

Trilha sonora

e visual

A maior parte da trilha sonora de Death Stranding é melancólica, com a maioria as faixas sendo compostas pela banda Low Roar. Durante a jogatina, enquanto caminhamos pelas montanhas e planícies, uma faixa da banda sempre começa a tocar para embalar nossa viagem pelo mundo devastado. Foi uma escolha que casou bem com o estilo de game solitário que Kojima propõe. Um álbum com 8 músicas originais será lançado junto com o game, intitulado “Timefall” inclui trabalho de artistas como Major Lazer, Chvrches e The Neighbourhood. O trabalho visual feito pela Kojima Productions não deixa nada a desejar. Mostrando poros, rugas e expressões faciais realistas que aproximam muito as cutscenes (cenas de corte, em tradução livre) a trechos de filmes em animação de computação gráfica. Parte desse sucesso também se deve as performances dos atores que possuem nomes de peso como Mads Mikkelsen (Polar). Vale destacar também a atuação de Troy Baker, Margaret Qualley e Tommie Earl Jenkins – esse último protagoniza uma das cenas mais expressivas que já vi em um videogame. Como a personalidade de Sam é muito parecida com a do personagem Daryl Dixon, interpretado por Norman Reedus na série The Walking Dead, o ator acaba ficando na mesmice, sem entregar algo diferente ou impressionante. Isso não quer dizer que o trabalho do ator seja ruim, pelo contrário, fez seu trabalho com competência como sempre, porém, sem se destacar. As paisagens são repletas de texturas que não fogem dos cenários desérticos, seja por rochas, terra molhada, grama ou neve. Há pouca natureza no universo de Death Stranding, sendo justificada na própria história com a chuva temporal. Alguns trechos contêm pequenos bosques, com terrenos bastante irregulares repleto de inimigos. O game rodou tranquilamente no meu PS4 tradicional, sem bugs ou quedas de quadro.

Death Stranding nos ensina a se reconectar

Death Stranding é de longe um dos maiores acertos dessa geração, que foge do tradicional e traz diversas mecânicas novas para os games de mundo aberto. Seu enredo é complexo e muito rico, o que vale uma atenção adicional do jogador para compreender a história em sua totalidade. Repleto de referências filosóficas, Kojima nos dá uma lição de empatia, passando a importante mensagem de ajudar e se importar com o próximo. Se você já estiver familiarizado com os games da produtora, já deve esperar cutscenes muito longas, nas quais o jogador apenas assiste passivamente por longos períodos de tempo. Esse aspecto continua presente em Death Stranding com um diferencial: o tempo de gameplay é igualmente longo ao contrário de Metal Gear Solid 4, por exemplo. Na primeira jogatina, zerei o jogo em 54 horas e ainda deixei muito conteúdo para trás. Se você aprecia um título que não pode ser zerado de um dia para o outro, essa é uma excelente opção. Quem conhece um pouco sobre a história do Kojima sabe que ele tem uma ligação muito forte com o cinema, e isso acaba influenciando seu modo de contar histórias nos videogames. Em alguns momentos, especialmente próximo ao final, fiquei incomodado com o alongamento do desfecho sem justificativa para despejar todas as revelações finais no colo do jogador. Isso não tira todos os méritos já citados anteriormente, até porque, como disse antes, já conhecia o trabalho do diretor. Porém, é fato que esse estilo não agrada a todos. Com uma belíssima mensagem, Death Stranding é um forte concorrente a jogo do ano e um dos melhores jogos dessa geração. Seu lançamento oficial está previsto para 8 de novembro, com exclusividade para o PlayStation 4. Em 2020, o game ganhará uma versão para PC. Esta análise foi feita no console PlayStation 4, com cópia cedida pela Sony.

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